“Sob o reino do [...] tsar
Pedro (século X), um padre chamado Bogomilo [...] foi
o primeiro a pregar a doutrina herética na Bulgária [...]”
Esta citação foi
extraída de um tratado contra Bogomilo. O pouco que conhecemos dele provém
quase que apenas dos escritos de seus inimigos. De acordo com um velho
documento búlgaro, ele foi anatematizado duas ou três vezes, o que
demonstra o quanto era temido pela Igreja oficial e a amplitude de sua
influência: um movimento gnóstico inteiro levava seu nome. Pelo fato de figurar
na lista dos autores interditados, ele deve também ter propagado seu ensinamento
por escrito. Ele é apresentado como um homem inteligente, muito audaz, que
exercia grande autoridade sobre seus semelhantes.
Ele começou como
padre ortodoxo e esteve muito próximo do povo, mas era totalmente contrário ao
cristianismo oficial (romano), em que rituais pretensamente sublimes
representavam um grande papel e davam uma importância preponderante à forma.
Esse tipo de cristianismo estava muito distante da mensagem original: a
necessidade de adquirir uma fé viva para que, em todos os aspectos de sua
existência, o ser humano ligue sua alma ao Espírito do reino dos céus.
Bogomilo não foi o
único a perseguir esse objetivo. Ele não foi o fundador da assim chamada Igreja
Dragoviciana, porém consideramo-lo o representante das doutrinas dessa Igreja,
de alguns ensinamentos paulicianos e das concepções maniqueístas. Ele
juntou esses ensinamentos, que se tornaram conhecidos naquele tempo como Igreja
Búlgara e Igreja Dragoviciana. Devemos ver isso na forma de duas correntes
dirigentes no interior de uma grande rede de fraternidades isoladas que,
partindo mais ou menos do mesmo ponto, procuravam viver de acordo com os mesmos
princípios. Disso, Bogomilo era o coração irradiante.
Assim como muitos
outros, Bogomilo condenava a arbitrariedade da Igreja e do Estado e seu sistema
de opressão. Ele compartilhava as idéias de múltiplos grupos gnósticos que
atuavam no sul dos Bálcãs, em particular a ideia da existência de
dois campos de vida separados, o que formava o próprio coração de sua crença.
Ele considerava seus adeptos “theotokos”, ou seja, aqueles que devem
“engendrar Deus”.
Ele chegou a
formular o direito à liberdade e à salvação das almas injustiçadas e dos
oprimidos que não tinham a possibilidade de se expressar. Ele defendia
a ideia de que existem dois princípios no ser humano, um terrestre e
um celeste, e que o princípio celeste deveria sair vitorioso sobre o princípio
terrestre. Lemos em um texto bogomilo:
O corpo que trazemos é uma criação das trevas, a alma que nele habita é o
primeiro homem e o germe da luz.
O primeiro homem foi vitorioso no país das trevas, e também em nossos
dias ele triunfará no seu corpo mortal.
O Espírito vivente, que outrora irradiou sobre o primeiro homem, é, ainda
hoje, nosso consolador, o “consolamentum”.
Não sabemos se
Bogomilo caiu nas mãos de seus perseguidores ou se pôde continuar na
clandestinidade. Todos os seus testemunhos escritos foram manifestamente
destruídos, porém não se conseguiu evitar as influências de seu ensinamento na
literatura de seu tempo. Os bogomilos mesclaram o essencial de sua fé na forma
de mitos e de lendas com a literatura búlgara. Exemplos dessa fé podem ser
encontrados nos contos, nos cânticos e nos poemas. Na Bulgária, bem como em
muitas partes da Europa e da Ásia, a sabedoria gnóstica floresceu outra vez.
Esses movimentos
desencadearam uma rebelião na Idade Média e obrigaram a Igreja da época a
mostrar sua verdadeira face: uma instituição onde a religião estava ligada às
autoridades e cuja reação contra os movimentos gnósticos de então constituiu um
dos capítulos mais sombrios de sua história.
A luz sempre
triunfará
Os representantes
da Igreja oficial qualificaram de dualista a doutrina pregada por Bogomilo. Os
dogmáticos esforçavam-se para provar que esses pretensos heréticos tinham parte
com as trevas em oposição ao reino de Deus. Ora, a mensagem de todo sistema
qualificado de gnóstico é que a luz triunfa sobre as trevas.
Contrário às
várias insinuações, Bogomilo e seus numerosos partidários ensinavam que existia
apenas um princípio divino único, e que o dualismo apenas aparecera quando
Satanael, o mais importante dos anjos, decidiu, contra o princípio divino
original, criar seu próprio mundo, uma terra e uma humanidade, tornando-se
assim o princípio mesmo do mal. Trata-se, portanto, de um dualismo temporário,
pois Satã será vencido pela luz e seu mundo desaparecerá.
O fato é que, na
sombria dualidade, a unidade da luz é rompida, dividida em dois pólos opostos.
Isso não ocorreu apenas num passado longínquo, porém acontece diariamente e
sempre. A lei da dualidade, a dialética, nos acua e não cessa de nos importunar
no espaço e no tempo até o momento em que acabamos por compreender que somos
seus prisioneiros e que devemos nos libertar dela. É preciso que a luz interior
oculta, na qual reconhecemos a verdade, ponha-se a brilhar em nós de tal
maneira que possamos rejeitar a ilusão da dualidade. Eis as palavras de uma
antiga prece bogomila:
Purifica-me, meu Deus, purifica-me no interior e no exterior.
Purifica corpo, alma e espírito, para que os germes da luz cresçam em mim
e me transformem num archote.
Transforma-me em flama que transmuda em luz tudo em mim e ao meu redor.
Fonte:
Revista Pentagrama (Lectorium Rosacrucianum), ANO XXVIII, Nº 4 (agosto
de 2006), pp. 19-21.
Muito bom.
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