domingo, 27 de janeiro de 2013

Maçonaria: Sociedade Iniciática ou Profana?

Grande Loja Unida da Inglaterra


"Poderá a Maçonaria -que Martinez de Pasqually considerava apócrifa- ser uma sociedade de iniciáveis? Na quase totalidade dos casos, somos obrigados a concluir pela negativa. Tendo-se tornado numa sociedade profana, incapaz de ascese e de praxis, gangrenada por preocupações mercantis e políticas, ou, mais simplesmente, burguesas, a Maçonaria não se distingue dos numerosos clubes, círculos ou associações que animam as nossas sociedades modernas senão por um cerimonial vazio de sentido para a maior parte dos participantes e assistentes."

Rémi Boyer 

A Iniciação Segundo Fernando Pessoa


Os textos que seguem são de autoria exclusiva do gnóstico português Fernando Pessoa

Chama-se iniciação ao entendimento profundo dos símbolos, sendo considerados símbolos, e não lições directas ou factos históricos, os rituais e (...) de todas as religiões. Assim um cabalista não interpreta os «seis dias» da criação do mundo como sendo «dias» no sentido directo; atribui-lhe outro sentido, que não importa qual seja. Assim um cabalista cristão não toma literalmente a narrativa dos Evangelhos; o nascimento de Jesus, e a sua morte, por exemplo, são por ele considerados como exposições simbólicas. Para um cabalista cristão a Segunda Pessoa da Trindade não pôde nascer em Nazaré (Belém).

Os Três Caminhos para Iniciação:

São três os caminhos da iniciação; servir-nos-emos, para os designar, das palavras de Saint-Martin: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A iniciação fraternitária consiste na entrada do candidato para qualquer Ordem com fins directamente iniciáticos, seja a Maçonaria seja qualquer Ordem superior a ela que não exija a qualificação maçónica. Este tipo de iniciação é o que convém aos espíritos por natureza pouco desenvolvidos, a quem a «cadeia de união», a participação com outros do mesmo simbolismo, é indispensável para abrirem caminho - se de todo lhes não for vedado abri-lo - através dos graus íntimos, em que a iniciação consiste.

O caminho da igualdade consiste na entrada do candidato para qualquer religião (...).
Há homens que só podem ser indivíduos em sociedade, isto é, cuja vida é essencialmente subordinada, para seu desenvolvimento, ao contacto com a vida alheia. Há outros homens que precisam, como aqueles, da vida alheia para se completarem em si mesmos, porém não precisam da subordinação, senão da simples coexistência. Há ainda outros, mas são raros, para quem a vida alheia é inútil, quando não daninha; que passam no mundo solitários por natureza, e são indivíduos em si mesmos.

A nenhum homem, se nele houver a disposição e o destino, a iniciação é vedada. A cada um dos três tipos de homens convém contudo um dos três tipos de iniciação. Os três tipos de iniciação são a iniciação pela Fraternidade, a iniciação pela Igualdade e a iniciação pela Liberdade. Sirvo-me da expressão trinitária de Saint-Martin, mas deve compreender-se que ela nada tem que ver com os falsos usos que mais tarde se fizeram dela, quer tomando-a como lema ou moto de algumas das Maçonarias (com a notável excepção da inglesa, cujo lema é «temer a Deus e honrar o Rei»), quer tomando-a como lema ou moto de coisas puramente profanas, como a Revolução Francesa, os princípios democráticos, ou o que mais seja.
A iniciação por Fraternidade convém aos indivíduos espiritualmente pouco desenvolvidos, e em quem o estímulo das faculdades intuitivas não pôde ser dado senão por meios materiais e grosseiros, como, por sua natureza, são os rituais, a cadeia de união, o contacto com outros em templos telhados.

Os Três tipos de iniciação:

Há três tipos distintos de iniciação—simbólica ou exterior, intelectual (exterior à interior) e vital (interior). Nas iniciações simbólicas, que reforçam a vontade e que, portanto, conduzem à Magia como realização, o candidato não passa por graus de entendimento, mas por graus de intuição, por assim dizer; ele está continuamente à superfície e na aparência das coisas, e, embora ele atinja o grau mais elevado, qualquer que seja a ordem ou ordens por que prossiga, esse grau mais elevado não precisa de corresponder (geralmente não corresponde) a qualquer coisa como um grau paralelo em qualquer das iniciações interiores. Nas iniciações intelectuais, que reforçam o intelecto e que, portanto, conduzem ao Misticismo como realização, o candidato passa por estádios de entendimento, mas não por estádios de vida; ele pode saber muito, mas não precisa de viver aquilo que conhece no mesmo plano em que o conhece. Nas iniciações vitais, que reforçam a emoção e, portanto, conduzem à Alquimia como realização, o candidato vive aquilo que sente e sabe.

(Isto está certo?). Não será antes que estas iniciações diferem numa outra medida, enquanto a diferença entre Magia, Misticismo e Alquimia (então e a Gnosis?) se encontra noutro plano de interpretação? Estas iniciações não são antes físicas, etéreas e astrais? (ou, talvez, etéreas, astrais e espirituais, ou astrais, mentais e espirituais?).

— Possivelmente há três modos pelos quais as iniciações podem ser interpretadas: (I) os três caminhos de realização, mágico, místico e gnóstico, (2) os três estádios de realização, Neófito, Adepto e Mestre, (3) os três graus de realização, astral, mental e espiritual.

Há, primeiro, e no nível ínfimo, a iniciação exotérica, análoga à iniciação maçónica, e de que esta é o tipo mais baixo: é a iniciação dada a quem propriamente se não encaminhou para ela, nem para ela se preparou (porque sugestão de outrem, o impulso externo, e a simples curiosidade não são preparações), e que serve para pôr o indivíduo em condições de poder dar se o caminho esotérico, de poder buscar, pelo contacto, embora esotérico, com símbolos e emblemas, o verdadeiro caminho. O mais exterior e nulo dos sistemas iniciáticos — como o é hoje a maçonaria — serve este fim, logo que tenha conservado os símbolos pelos quais em nós se infiltra o primeiro conhecimento do oculto. O único fim com que os Rosa-Cruz instituíram a maçonaria exotérica é o de pôr muita gente em contacto com, por assim dizer, o aspecto externo da verdade oculta, podendo assim aqueles, que se sintam aptos, ascender a ela lentamente.

Há, depois, a iniciação esotérica. Difere da primeira em que tem que ser buscada pelo discípulo, e por ele desejada e preparada em si mesmo. «Quando o discípulo está pronto», diz o velho lema dos ocultistas, «o mestre está pronto também.»

Há, por fim, a iniciação divina. Esta, não a dão nem exotéricos ou esotéricos menores, como a exotérica, nem até Mestres ou Esotéricos Maiores, como a esotérica; vem directamente, e por cima destes todos, das mesmas mãos, do que chamamos Deus. O tipo supremo desta iniciação é o de Jesus, a quem Deus, de nascença, converteu em sua mesma Essência, tornando-o Cristo.

Iniciado exotérico é, por exemplo, qualquer mação, ou qualquer discípulo menor de uma sociedade teosófica ou antroposófica. Iniciado esotérico é ,por exemplo, um Rosa-Cruz, um Francis Bacon, seja. Iniciado Divino é, por exemplo, um Shakespeare. A este tipo de iniciação vulgarmente se chama génio.
Quando Shakespeare disse, «uns nascem grandes, outros chegam à grandeza, a outros é a grandeza imposta» deu, talvez sem querer e julgando ser simplesmente irónico, a chave das três iniciações, na ordem descendente. Outro sentido não tem a mesma frase do Cristo que diz o mesmo pela «a uns fazem eunucos desde o ventre materno», em que, por uma expressão simbólica que a intuição facilmente compreende, se exprime pelo eunuquismo o afastamento dos outros que caracteriza a iniciação.


A busca pela Iniciação:


Como, então, deve um homem que busque a iniciação treinar-se para ela? Como, por outras palavras, deverá ele tomar dentro de si os Graus de Neófito da Ordem Interior? Ele deve começar por familiarizar-se com sistemas filosóficos e com a filosofia que emerge, mal ou bem, das aquisições mais recentes da ciência Com este suporte, ele deve reflectir e comparar, confrontando sistema com sistema, teoria com teoria e parte de cada sistema comas outras partes. Desenvolverá assim a sua inteligência abstracta sem a qual a intuição que ele busca desenvolver mais não será do que emoção.

Ele deve começar por se despir de todos os preconceitos dogmáticos, de todas as coisas que foram
introduzidas no seu espírito pela educação e pelo hábito. O caminho da iniciação não pode ser alcançado através dos portais de qualquer das igrejas, mas antes através dos portais de todas ao mesmo tempo ou de nenhuma. Seguidamente, ele deve familiarizar-se com sistemas religiosos de todas as espécies, com sistemas filosóficos.... (ut supra).

Deve depois elaborar, o melhor que puder, um sistema próprio seu, construído lentamente, com aquilo que ele aprendeu, sem necessariamente o escrever, um sistema, tão coerente quanto ele puder fazê-lo, de interpretação do universo nas triplas linhas de verdade, beleza e conduta.

Depois procederá ao abandono do sistema que formar. Terá chegado a amá-lo, mas cabe-lhe agora reconhecer que ele não vale mais do que os outros sistemas filosóficos que ele comparou entre si e, uma vez que estabeleceu o seu próprio sistema, rejeitou.

Assim, ele terá atravessado os quatro estádios da tentação do Mundo — o Dogma, a Inteligência Concreta ou Ciência, a Inteligência Abstracta ou Filosofia e a Inteligência Crítica.

O Dogma pelo qual ele está preso aos outros; a Ciência pela qual ele está preso à Natureza; a Filosofia pela qual ele está preso aos espíritos de outros; a sua própria filosofia pela qual ele está preso a si próprio, porque o Mundo é tudo isto. Uma vez que passou estes quatro estádios do grau de Neófito, está pronto para a iniciação. Dele depende agora escolher por que caminho a fará—se pelo caminho místico, se pelo caminho mágico ou pelo gnóstico. É mais justo dizer o caminho por onde ele começará a fazê-la, porque a iniciação plena no grau de Adepto inclui os três. No primeiro Grau de Adepto ele tomará a via que escolheu e completará o seu caminho nela; no segundo Grau de Adepto ele tomará uma das outras duas vias; no terceiro Grau de Adepto ele tomará a via que resta.

Ele tem de vencer as três tentações que estão subjacentes à Carne — os desejos que são vencidos pelo Misticismo; as indecisões que são vencidas pela Magia; os enganos que são vencidos pela Gnose. Tem de vencer (…)

Dir-se-á que isto torna a iniciação uma tarefa muito difícil. Torna-a, porque assim é. Por que é que a iniciação havia de ser fácil? Dir-se-á que só um homem de especial inteligência pode tomar os graus de neófito, uma vez que é necessário ter capacidade de reflexão abstracta para se ser apto em filosofia, e nem toda a gente a possui. Mas por que é que toda a gente havia de estar em condições de ser iniciado? Se se disser que isto é injusto, podemos replicar assim: Porque é que o universo havia de ser justo? — o que é talvez uma resposta errada, mas certamente suficiente, — ou que a questão se baseia no pressuposto de que não há desenvolvimento no mundo; ou, por outras palavras, que o homem termina num curto lapso de vida terrena e que é possível que a reencarnação seja verdadeira quando não há injustiça, mas apenas graus, porque na própria vida exterior há graus de força, beleza, inteligência e outras coisas idênticas.
Um homem pode, pelo menos, aspirar à iniciação e, se a inteligência abstracta é o primeiro grau no caminho e ele não tem inteligência abstracta, pode pelo menos aspirar a ela; custa-lhe tanto ou tão pouco aspirar à inteligência como à iniciação, e realmente ele aspira à mesma coisa na ordem própria quando aspira à inteligência.

(O místico sem inteligência não atingiu o primeiro Grau de Adepto: ele não fez mais do que atingir o grau intermédio entre os Graus de Neófito e de Adepto, o purgatório vazio da ascensão errada).



O Significado Real da Iniciação:


Mas o significado real da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão. A iniciação é o dissipar — um dissipar gradual, parcial — dessa ilusão. A razão do seu segredo é que a maior parte dos homens não está adaptada a compreendê-lo e, portanto, compreendê-lo-á mal e confundi-lo-á, se for tornado público. A razão de ele ser simbólico é que a iniciação não é um conhecimento, mas uma vida, e o homem deve, portanto, descobrir por si o que mostram os símbolos, porque, assim, viverá a vida deles, não se limitando a aprender as palavras em que são mostrados.
Dizer que Cristo é um símbolo do Sol é pôr o processo iniciatório ao invés. É o Sol que é o símbolo de Cristo. Por outras palavras, Cristo é a realidade e o Sol a ilusão, Cristo é a luz, e o Sol a sombra. (O Inefável é a luz; o GA, corpo; o mundo, sombra — a sombra projectada pelo denso quando iluminado pelo subtil. A luz está na circunferência e a sombra lançada para o centro. Isto tem alguma coisa a ver com o pt. dentro do c.?) (Cf. a ideia cabalística do En Soph retirando-se para dentro, manifestando-se dentro e não fora).

Iniciar um homem por um ritual complicado e mais ou menos impressivo e depois confiar-lhe, sob promessas de segredo e juras mais ou menos terríveis, que a Primavera vem depois do Inverno — isto nunca podia ter sido o plano de qualquer corpo ou sistema iniciático. Mas tê-lo-ia sido ensinar o contrário — que a Primavera, seguindo-se ao Inverno, é um símbolo de coisas maiores, que o natural é uma figuração do sobrenatural.

Isto, feito com mais ou menos pormenor, em símbolo, depois em doutrina, depois em revelação, é a essência de todas as verdadeiras iniciações, de Eleusis a Kilwinning.

Ordens de inic.: (I) através de símbolos e (mais tarde) explicações em si próprias simbólicas—cf. Pike; (2) através de doutrina simbólica, verdadeira ao seu nível, e explicações, já não simbólicas; (3) através de comunicação directa, embora não necessariamente falada ou expressa.

Não digo que estas coisas representem uma verdade e não digo que o não façam. Digo que este é o significado da iniciação, que é assim que a iniciação existe e que é para estes fins que ela existe.


Iniciação
                         
                     
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiran-te os Anjos a capa :
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada :
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto, entre ciprestes.


Neófito, não há morte.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A Crucificação Segundo o Islam

Naquela festa (Páscoa), Pilatos tinha a intenção de libertar um preso a fim de manter sua popularidade entre os judeus. O escolhido foi Barrabás, que coincidentemente se chamava Jesus (Yeshu'a bar Abbas ha-Kanai) e estava preso por ser um insurgente (ver Marcos XV: 7). Pilatos ordenou: Que Barrabás seja liberto! Mas seus oficiais cometeram um erro: libertaram Jesus, o Nazareno (Yeshu'a bar Yosef ha-Natzri), e crucificaram Barrabás. 

 (Evangelium Musulmanorum XXVI: 19-21)


Os judeus debochadamente diziam: "Matamos o 'Mashiach', Yeshu'a bar Miriam, o 'Mensageiro de Deus'!" Embora não seja verdade que eles o mataram, nem o crucificaram, senão que isso lhes foi simulado. E aqueles que discordam quanto a isso, estão na dúvida, porque não possuem conhecimento algum, abstraindo-se tão-somente em conjecturas; porém, O FATO É QUE NÃO O MATARAM. Outrossim, Deus fê-lo ascender até Ele...

(al-Qur'an al-Karim IV: 157-158)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A Gnose do Cristo de Nag Hammadi

Wilson Roberto Vieira Ferreira

A descoberta e as posteriores traduções da chamada “biblioteca de Nag Hammadi” no Egito trouxeram uma nova luz sobre os ensinamentos de Cristo. O foco comum dado pelas religiões na morte-ressurreição de Cristo e no plano ético e devocional da sua passagem pela Terra esconderia a sua principal missão: a de trazer o conhecimento secreto que nos faça ter a consciência de que estamos perdidos e longe de casa, e o caminho de volta já está dentro de nós. Cabe a nós relembrarmos.

"O pensamento aguarda que, um dia, a lembrança do que foi perdido venha despertá-lo e o transforme em ensinamento" - Theodor Adorno

O Gnosticismo em geral, e os evangelhos apócrifos descobertos em Nag Hammadi no Egito em 1945 (conjunto de antigos pergaminhos composto pelos evangelhos que revelariam a natureza do antigo cristianismo e as interpretações místicas de Cristo feitas pelos gnósticos) em particular, apresentam um espectro de crenças cujo núcleo central filosófico é bem discernível, aquilo que Kurt Rudolph chama de "mito central": o Gnosticismo nos ensina que algo está desesperadamente errado com o universo. Dessa forma os escritos gnósticos tentaram delinear os meios de explicar essa falha cósmica e corrigir a situação.

O universo, tal como atualmente constituído, não é bom, nem foi criado por um Deus todo poderoso. Em vez disso, um deus menor, ou “demiurgo” (como é chamado às vezes), moldou o mundo na ignorância. O Evangelho de Filipe de Nag Hammadi, diz que "o mundo surgiu através de um erro. Para aquele que o criou queria criá-lo imperecível e imortal. Ele ficou aquém de alcançar o seu desejo.” A origem do demiurgo é diversas vezes explicada como resultante de alguma perturbação pré-cósmica na cadeia de seres que emanam do incognoscível Deus-Pai. Isso originou a “queda” de uma divindade inferior, com credenciais bem menores. Tentando recriar nos planos inferiores a Plenitude da qual “decaiu”, acabou por criar um cosmos material encharcado de dor, ignorância, decadência e morte - um trabalho malfeito, com certeza.

Esta deidade, no entanto, despoticamente exige adoração e até mesmo pretensiosamente proclama a sua supremacia como o único Deus verdadeiro. Este deus-criador não é a realidade última, mas sim uma degeneração da plenitude desconhecido e incognoscível do Ser (ou “Pleroma”). No entanto, os seres humanos - ou pelo menos alguns deles – teriam condições para ultrapassar essas limitações impostas por esse cosmos hostil - e essa narrativa lembra uma série de filmes recentes de ficção científica, de "Blade Runner", passando pelo novo clássico "Matrix" até chegar ao recente "Prometheus".

Tal qual um joalheiro bêbado que acidentalmente mistura ouro com o pó metálico do lixo, o demiurgo acabou trancando no interior do corpo físico de cada indivíduo a centelha da mais alta realidade espiritual ao infundir a humanidade na sua criação. Simplificando, o espírito é bom e desejável; matéria é má e detestável. Se essa faísca for ventilada criará chama, libertando os seres humanos da matrix enlouquecedora da matéria e das exigências de seu criador obtuso. O que delegou da perfeição pode finalmente evoluir de volta para a perfeição através de um processo de auto-descoberta.

Jesus era um “aeon”

Dentro dessa estrutura básica entra a ideia de Jesus como Redentor dos abrigados na materialidade. Ele vem como um descendente do reino espiritual com uma mensagem de auto-redenção. O corpo de literatura gnóstica, que é mais amplo do que os textos de Nag Hammadi, apresenta vários pontos de vista desta figura Redentor.

Há, de fato, diferentes escolas do gnosticismo com cristologias diferentes. No entanto, a imagem comum emerge. O Cristo vem dos níveis mais elevados de seres intermediários (os chamados “aeons”, emanações da “Região da Luz”), não como alguém que veio se sacrificar na cruz para nos redimir dos pecados, mas como um revelador que veio sob a forma física de Jesus e para nos ensinar o caminho da gnose que nos faria relembrar o caminho de volta ao Pleroma.

Ele não foi uma espécie de agente pessoal do deus-criador revelado no Antigo Testamento - essa divindade metafisicamente despenteada e que criou um universo que está em uma verdadeira bagunça.  Em vez disso, Jesus desceu de um nível mais elevado para ser um catalisador, para inflamar a “gnosis” latente dentro do ignorante. Em vez de trazer uma restauração ética às criaturas errantes de Deus através da crucificação e ressurreição, Ele teria vindo para nos relembrar que dentro de cada um de nós estaria uma verdade esquecida.

Morte e ressurreição de Cristo

Cristo teria feito parte de uma cadeia de iluminados, aeons: Set, Enoque, Nicoteo, Noé, Sem, Abraão, Zoroastro, Buda etc. Todos eles teriam tido a missão de nos mostrar que as nossas percepções condicionadas pelas experiências distorcidas nesse cosmos físico criaram uma prisão da essência espiritual no homem (a “centelha”). Lembrar através de um conhecimento secreto que o homem está perdido e longe de casa.

O problema é que o cristianismo foca no sofrimento e na morte de Cristo, beirando o sado-masoquismo. Para o gnóstico, dor e sofrimento são partes da condição da queda nesse mundo, o resultado de nossa queda na a matéria.

Não há graça no sofrimento. O objetivo é transcender a matéria, não chafurdar em seus aspectos mais dolorosos. O foco no sofrimento e na morte de Jesus demonstra apenas a reação do ignorante para a principal lição de Cristo: a gnose. Ao contrário, na “ressurreição ilustrada” a morte é um tema superado. É irrelevante se fisicamente Jesus voltou dos mortos ou não, uma vez que os gnósticos e Jesus têm desprezo pela matéria, parece altamente improvável que a ressurreição teve a ver com a re-animação de um cadáver. Foi um despertar para a luz, a Transfiguração, em vez de alguma misteriosa reanimação.

O Conde de Cagliostro (II)

Escrito por Camilo Castelo Branco

Admitido assim aos mistérios da seita, não deixou, em todo o tempo que residiu em Londres, de frequentar aquelas diversas lojas; porém, antes de sair dali, comprou a um livreiro alguns manuscritos que diziam ou pareciam ser de um tal Jorge Cofton, por ele inteiramente desconhecido. Viu que tratavam da maçonaria egipciana, mas com um sistema que tinha muito de mágico e supersticioso.

Propôs-se então o nosso Cagliostro criar, debaixo destes traços, um novo rito de maçonaria, tirando-lhe, porém, (disse ele), quanto tinha de mau, que vinha a ser a superstição e a mágica. Com efeito, levou a bom termo o seu desígnio, e o rito por ele fundado e propagado em tantas partes do mundo grandemente contribuiu para a sua celebridade. Disse-se noutra parte qual o impulso desta sua determinação, que foi abrir uma fonte copiosa de contribuições, já em dinheiro, já em jóias e roupas. Quem já nada cria em matéria de fé, que temor podia ter no meio da multipilicidade das seitas maçónicas? Pensou unicamente em realizar, à sombra desta novidade, mais estrondosas extorsões.

Para que se possa compreender tudo o que no decurso de tantos anos e de tantos lugares obrou nesta matéria, é necessário expor o plano do sistema, ou rito egipciano, por ele instituído, cotejando-o fielmente com o livro que ele compôs, e que apresentou como um código completo. Indo-se buscar a sua casa, solenemente o reconheceu e confessou que por ele sempre se tinha regido no exercício da maçonaria; que este mesmo livro lhe serviu de norma às iniciações que fizera em diversas lojas, e que vários exemplares deixara nas Lojas-Madres que fundou em diferentes cidades, como veremos.

Os leitores distinguirão bem, sem a ajuda das nossas reflexões, qual e quanta seja a malícia do seu autor, e a fraude que esconde debaixo das mentirosas divisas de piedade, de caridade e de subordinação às leis. Estes são os caracteres da sua impiedade infalivelmente superior e do mais detestável de todos os sistemas maçónicos. O livro, escrito em francês, tem o ressaibo de seu idioma. Cagliostro seria capaz de tanto? Certamente que não. É certo, pelo que consta, que ele inventou e forneceu matéria, porém, para escrever, serviu-se de pessoa de talento, não menos cega que ele em coisas de fé, animada dos encantos de sua vaidade, de seus discursos e operações.

Prometeu ensinar a seus sequazes o sistema e conduzi-los à perfeição por meio da regeneração física e moral, e assim fazer-lhes encontrar a matéria-prima ou a pedra filosofal, e a inocência, que consolidam no homem as forças da mais sã mocidade, tornando-o imortal; mais uma vez de posse disto, o homem adquire um Pentágono que o restitui ao estado de inocência primitiva, perdido pelo pecado original.

Finge Cagliostro que a maçonaria egipciana foi iniciada por Enoch e Elias, que a propagaram por diversas partes do mundo, e que, devido ao giro dos anos, se tinha degradado muito da sua primitiva pureza e esplendor. Aquela já tinha sido reduzida pelos homens a uma simples murmuração, e a outra pelas mulheres a uma total destruição, por não terem ordinariamente lugar na comum maçonaria. Enfim, o zelo do Grão-Copta (nome próprio dos sumos sacerdotes egipcianos) propunha restituir ao seu primitivo lustre a maçonaria, num e noutro sexo.

Expõem depois os estatutos os requisitos que devem exigir-se aos que querem ser admitidos aos três distintos graus, funções e catecismo dos aprendizes, companheiros e mestres, e o número de que comporá cada classe; os sinais distintivos com que se devem reconhecer entre si; os oficiais a quem cabe presidir e convocar a sociedade; o tempo de suas respectivas reuniões; a criação de um tribunal encarregado de julgar as questões que possam ocorrer entre lojas e as faltas de seus respectivos membros; aquele estreito vínculo de união com que são obrigados a proteger-se os irmãos em particular, e todas as lojas em geral, e as muitas cerimónias que se devem observar rigorosamente, assim na admissão dos indivíduos a cada um dos três graus indicados, como nas celebrações das lojas.

Em tudo isto há seu tanto ou quanto do sacrilégio, da profanação, da superstição e da idolatria que praticam as outras seitas da maçonaria ordinária; invocações do santo nome de Deus; prostrações e adorações à venerável cabeça da loja; sopros, aspirações, incensos, perfumes, exorcismos aos candidatos e aos vestidos que hão-se envergar, emblemas da sacrossanta Trindade, da Lua, do Sol, da plaina, do esquadro, e outras mil semelhantes iniquidades, bem conhecidas de todos. Na maçonaria de que tratamos, há alguma coisa ainda que, pela novidade, apresenta a mais abominável extravagância.

Já falámos do Grão-Copta, fundador ou restaurador da maçonaria egipciana, e diremos, a propósito, que Cagliostro não recuou em insinuar que, debaixo deste nome, estava a sua pessoa, e, com efeito, todos assim o reconheciam. Neste sistema, o Grão-Copta é igual ao Eterno Deus: a ele se rendem os actos mais solenes de adoração; a ele se atribui a autoridade de comandar os anjos; ele se invoca em todas as ocorrências; tudo se obra em virtude do seu poder, que se assegura ser-lhe singularmente comunicado por Deus. Porém, ainda há mais: em diversas cerimónias que se realizam nesta maçonaria, está prescrita a reza do Veni Creator Spiritus, o Te Deum e alguns Salmos de David. Chega a tal extremo a temeridade, que no salmo Memento Domini David, et omnis mansuetudinis ejus, o nome de David é substituído pelo do Grão-Copta!

Nenhuma religião é excluída da sociedade egípcia: o hebreu, o calvinista, o luterano, o católico, podem indiferentemente ser admitidos, porque acreditam na existência de Deus e na imortalidade da alma, e acham-se já alistados na maçonaria ordinária. Os homens que chegam ao grau de mestres tomam o nome dos antigos profetas, e as mulheres o das sibilas. O juramento que se exige aos primeiros é o seguinte: Eu prometo, obrigo-me e juro de não revelar jamais os segredos que me forem comunicados neste Templo, e de obedecer cegamente aos meus superiores. O das mulheres é concebido assim: Eu, juro em presença do grande Eterno Deus, de minha mestra, e de todas as pessoas que me ouvem, de não revelar jamais, nem fazer entender, escrever nem fazer escrever, tudo quanto se passa aqui à minha vista, condenando-me a mim mesma, no caso de imprudência, a ser castigada segundo as leis do grande fundador e de todos os meus superiores: prometo igualmente a mais exacta observância dos outros seis mandamentos que me impuseram: o amor de Deus; o respeito a meu soberano; a veneração pela religião e pelas leis; o amor a meus semelhantes; uma reverência sem reserva à nossa ordem, e a mais cega submissão aos regulamentos e leis do nosso rito, que me sejam comunicados por minha mestra. Ao passar ao terceiro grau de mestre ou mestra renova-se o juramento, porém o livro não refere a forma.

É sabido que na maçonaria ordinária há o costume de dar ao iniciando dois pares de luvas, um para si, e outro para que o dê à senhora que mais estima. O Grão-Copta, adoptando semelhante costume, junta a particularidade de se cortarem às mulheres, no acto da entrada, uns poucos de cabelos, que lhes restituem acabada a função, os dêem ao homem que mais estimam. Particulares e sacrílegas são igualmente as formas com que se admitem candidatos à posse de seus respectivos graus. Referiremos somente o que respeita à mulher aceite ao grau de aprendiza, e outra correspondente ao homem que sobe ao grau de companheiro. Na primeira, a mestra dá um sopro na cara da candidata, prolongando-o desde a fronte até à barba, e pronunciando estas palavras: Eu vos dou este sopro para fazer brotar e penetrar em vosso coração a verdade que nós possuímos; eu vo-lo dou para fortificar em vós a parte espiritual; eu vo-lo dou para confirmar-vos na fé de vossos irmãos e irmãs, segundo as obrigações que tendes contraído. Nós vos criamos filha legítima da verdadeira adopção egípcia e da loja, etc.; nós queremos que vós sejais reconhecida nesta qualidade por todos os irmãos e irmãs do rito egipciano, e que vós gozeis das mesmas prerrogativas; nós vos damos o poder para ser desde agora em diante e para sempre mulher franco-maçon e livre. Quanto aos homens que sobem ao grau de companheiro, o mestre fala-lhes assim: Pelo poder que tenho do Grão-Copta, fundador da nossa Ordem, e pela graça de Deus, eu vos confiro o grau de companheiro e vos constituo custódio de novos conhecimentos, os quais vos participaremos em os nomes sagrados de Xalion, Melion e Talhagramaton.

No caderno da seita dos iluminados, impresso em Paris no ano de 1789, refere-se que estas últimas palavras foram sugeridas por Cagliostro, como santas e arábicas, de um certo jogador de peloticas, que dizia estar assistido de um espírito, que era alma de um hebreu cabalista, o qual por arte mágica tinha morto o padre antes da vinda de Jesus Cristo.

Os maçónicos ordinários têm por protector S. João Baptista, e por isso o homenageiam, ao contrário do rito de Cagliostro, onde é S. João Evangelista (neste dia foi Bálsamo preso em Roma) o festejado, dizendo ele que em virtude da grande afinidade que há entre o Apocalipse e as diversas passagens do mesmo rito. Delas convém aqui falar, para plena inteligência da impiedade do sistema e das operações em que continuamente se exercitou, como veremos.

Na passagem dos homens ao grau de mestres prescreve-se a seguinte execranda função: toma-se um menino ou menina que esteja no estado de inocência (a que se dá, respectivamente, o nome de pupilo ou pomba), a qual recebe, comunicado pelo venerável, o poder de que, antes da queda do homem, estava investida, e em especial o de mandar os sete espíritos puros que dizem existentes no trono divino e que regem os sete planetas, assim nomeados no sistema ou livro de que vimos tratando: Anael, Rafael, Gabriel, Uriel, Zobiaquel, Anaquiel.

Conduzida a pupila à presença do venerável, esta dirige, juntamente com os membros da loja, orações a Deus para que se digne permitir-lhe o exercício do poder que lhe foi comunicado pelo Grão-Copta, a fim de que possa obrar segundo os mandamentos do venerável e servir de mediadora entre ele e os espíritos que se chamam intermediadores. Depois, vestida com um hábito talar branco, adornada de faixa de turquesa e cordão encarnado, e aspirada com um sopro, encerram-na num Tabernáculo, que é um lugar apartado do Templo, armado de branco, tendo por fora uma porta de entrada, pela qual se há-de ouvir a voz e, no interior, uma pequena mesa onde ardem três velas. Renova o venerável as orações, e começa a exercer aquele poder que diz ter recebido do Grão-Copta, obrigando os sete anjos a comparecer perante a pomba. Quando esta anuncia a sua presença, aquele ordena-lhe, em virtude do poder que Deus conferiu ao Grão-Copta e o Grão-Copta lhe comunicou a ele, que pergunte ao anjo Anael se o candidato tem os méritos e os requisitos necessários para se elevar ao grau de mestre, e, sendo a resposta afirmativa, passa a outras cerimónias e funções necessárias para a elevação do iniciando.

A mesma cerimónia se prescreve para a elevação das mulheres ao magistério, mas com alguma diferença; à pomba, colocada, como se disse, no Tabernáculo, é-lhe ordenado que faça comparecer um só dos sete anjos e que lhe pergunte se será permitido levantar o véu com que está coberta a inicianda. Seguem-se outras supersticiosas cerimónias, e depois o venerável diz à pomba que mande comparecer os outros seis anjos, aos quais se dirigirá nos seguintes termos: Pelo poder que o Grão-Copta conferiu a minha mestra, e pelo que eu dela obtive, ordeno-vos, anjos primitivos, que consagreis estes hábitos, fazendo-os passar por vossas mãos. São estes hábitos os vestidos e insígnias da Ordem, e juntamente uma coroa de rosas secas. Quando a pomba verifica que os anjos realizaram a consagração, ordena-se-lhe que faça comparecer Moisés, a fim de que também abençoe os ditos vestidos, e tenha nas mãos a coroa de rosas durante o resto da cerimónia. Depois lançam-se pela janela do Tabernáculo os vestidos, as insígnias, e, entre elas, as luvas que levam escrito no meio: eu sou homem; e tudo entrega à candidata, Seguem-se outras perguntas à pomba, especialmente para dizer se sim ou não Moisés teve sempre na mão a coroa, e, respondendo que sim, põe-se-lhe na cabeça. Finalmente e após outras práticas igualmente sacrílegas, faz-se uma outra pergunta à pomba: se Moisés e aos sete anjos foi grata a promoção. Invocada a vinda do Grão-Copta para que também a abençoe e aprove, fecha-se a loja.

Não será importuna uma breve digressão, que possa servir de desengano àqueles que porventura tenham tido a desgraça de cair nesta cegueira. O Grão-Copta, o restaurador da maçonaria egipciana, o conde de Cagliostro, mostra em diversas partes do seu sistema ter em grande conta o patriarca Moisés. No entanto, o próprio Cagliostro declarou espontaneamente tera alimentado sempre em seu ânimo uma insuperável antipatia contra o mesmo Moisés. Em sua opinião, Moisés foi um ladrão, por ter tirado aos egipcianos seus vasos; e, em face dos mais claros argumentos com que o refutaram, procurando convencê-lo do seu erro, pérfida e obstinadamente sustentou seu modo de ver, o que faz supor ter visos de verdade o que foi dito por sua mulher - que a antipatia de seu marido por Moisés procedia de origem mui diversa, qual era a de ele não comparecer a seus trabalhos maçónicos. No entanto, amara sempre os hebreus como a si mesmo, e costumava dizer que é a gente mais bela do mundo.

Mas voltemos ao nosso intento.

O fim da sua maçonaria, como por mais de uma vez temos dito, consiste na perfeição do homem, meio pelo qual promete conduzir os sequazes à regeneração moral e física, depois que tenham subido ao grau de mestres. Para obter uma e outra, prescreve duas distintas quarentenas, que vêm a ser: um retiro de quarenta dias pela primeira vez, e uma cura corporal de outro tanto tempo, pela segunda. As práticas impostas para uma e para a outra formam um complexo que é uma demonstração triunfante da iniquidade do sistema. A descrição que vamos fazer justificará a nossa proposição.

O que pretende obter a regeneração moral, que significa a inocência primitiva, deve subir a uma montanha altíssima, à qual dará o nome de Sinai, e no seu cume construirá um pavilhão, dividido em três planos ou estâncias, que se denominará Sião. A câmara superior medirá dezoito pés quadrados, tendo quatro janelas ovais por cada lado, cada uma só porta de entrada. A segunda câmara, situada no meio, será perfeitamente redonda, sem janelas, e capaz de acomodar treze pequenas camas; uma só lâmpada, colocada no meio, alumiará, e não haverá ali móvel algum que não seja necessário. Esta segunda câmara chamar-se-á Arazat - nome da montanha sobre a qual se assentou a arca, em sinal de repouso que está reservado só aos maçons eleitos de Deus. - Finalmente, a terceira câmara terá capacidade conveniente para servir de refeitório e, ao redor, três gabinetes; em dois deles guardar-se-ão as provisões e tudo o mais que preciso for, e no terceiro os vestidos, as insígnias e os instrumentos maçónicos da arte, segundo Moisés.

Juntas as provisões e os instrumentos necessários, encerram-se treze mestres no pavilhão, sem mais poderem sair durante quarenta dias, que é quanto demoram os labores e trabalhos maçónicos, observando em cada dia a mesma distribuição de horas: seis serão empregadas na reflexão e repouso; três na oração e holocausto ao Eterno, que consiste em dedicar-se todo a si mesmo com a maior força do coração, tendo em vista a maior Glória de Deus; nove nas sagradas operações, tais como a preparação da carta virgem e a consagração dos instrumentos que devem fazer-se todos os dias; as últimas seis na conversação e restabelecimento das forças perdidas, tanto físicas como morais. Passado que seja o dia trigésimo terceiro destes exercícios, começarão os encerrados mestres a gozar do favor de comunicar visivelmente com os sete anjos primitivos, e conhecer o selo e a cifra de cada um destes entes imortais. Um e outro serão por eles mesmos provados na carta virgem, composta, ou da pele de um cordeirinho recém-nascido, purificado em pano de seda, ou da secundina de uma criatura do sexo masculino, nascido de uma hebreia, purificada igualmente, ou de papel ordinário, benzido pelo fundador.

Este favor durará até ao dia quarenta, no qual, concluídos os labores, começará cada um a gozar do fruto deste retiro, isto é, cada um recebe, de per si, o Pentágono, ou a carta virgem, sobre a qual os anjos primitivos imprimiram suas cifras e selos.

Fortificado com isto, e feito assim mestre e cabeça do exército, sem socorro de algum mortal, seu espírito encher-se-á de fogo divino, e seu corpo ficará puro como o do menino mais inocente; sua penetração não terá limites; seu poder será imenso; não aspirará a outra coisa mais que a um perfeito repouso para chegar à imortalidade e poder dizer de si: Ego sum qui sum.

Além do Pentágono sacro, terá outros sete diferentes, dos quais poderá dispor a favor de sete pessoas, homens ou mulheres, que sejam de sua maior estimação. Estes Pentágonos secundários só têm impresso o selo de um dos sete anjos; portanto, quem o possui não pode exercer império sobre outro que não seja este, e fá-lo-á não em nome de Deus, como possuidor do primeiro Pentágono, senão em nome do mestre de quem o recebeu, obrando por seu poder, do qual pelo outro ignora o princípio.

Vejamos agora o seguimento da regeneração, ou perfeição física, com a qual pode a pessoa chegar, ou à espiritualidade de 1557 anos, ou prolongar a vida sã e tranquila até que Deus o queira chamar a si. Quem aspira a tal perfeição, deve, cada cinquenta anos, retirar-se no plenilúnio de Maio, com um amigo ao campo, e ali, encerrado numa cela ou alcova, sofrer, durante quarenta dias, uma dieta rigorosa, com escassos alimentos, consistindo em sopas ligeiras, ervas tenras, refrigerantes, laxativos, e bebidas de água destilada ou da chuva de Maio. No décimo sétimo dia deste retiro, feita uma pequena sangria, tomará certas gotas brancas, que não explica de que sejam compostas, seis pela manhã e seis de tarde, acrescentando mais duas pelo dia adiante, até ao dia trinta e dois, em que procede a uma pequena sangria ao nascer do Sol; no dia seguinte mete-se na cama até concluir a quarentena, e ali sobe ao primeiro grau da matéria-prima, aquele mesmo que Deus criou para tornar o homem imortal e que este perdeu pelo pecado, não podendo reavê-lo senão pelo favor do Eterno ou pelos exercícios maçónicos. Tomado este grau, o que houver de ser renovado perde o conhecimento e a fala por três horas e, convulsionado, exsolve-se numa grande transpiração e evacuação; depois, tornando a si e mudando a cama, há-de ser confortado com uma substância composta de uma libra de carne sem gordura e várias ervas refrigerantes.

Se o confortivo o põe em bom estado, no dia seguinte dá-se-lhe o segundo grau de matéria-prima numa tigela de substância, cujos efeitos, ao contrário da primeira, lhe ocasionarão uma grande febre com delírio, caindo-lhe a pele, os cabelos e os dentes. No dia seguinte, trinta e cinco, se o doente tem forças, tomará banho, nem quente nem frio, que não pode exceder uma hora. No dia trinta e seis, num vaso de vinho velho e generoso, tomará o terceiro grau de matéria-prima, que o porá num sono doce e muito sossegado. É então que nasce outra vez a pele e começam a aparecer os dentes e o cabelo. Tornando a si, deve entrar num novo banho aromático, e lavar-se, no dia trinta e oito, num banho de água ordinária, na qual se deitará nitro. Tomado o banho, vestir-se-á e passará pela sala, tomando, no dia trinta e nove, algumas gotas do bálsamo do grão-mestre em duas colheres de vinho tinto.

No dia quarenta, finalmente, sairá de casa, já de todo renovado. Para complemento da história, não deixaremos de advertir que um e outro método estão prescritos, igualmente para as mulheres, e que, na parte correspondente à regeneração física se manda, a cada uma delas, retirar para a montanha ou para o campo com a única companhia de um amigo, o qual deve prestar-lhe todos os ofícios necessários, em particular aqueles que correspondem à crise da cura corporal.

É esta a trama do seu sistema ou maçonaria egipciana, que muito pela rama explanamos, a fim de corresponder à brevidade que prometemos. Da outra análise que sobre o dito sistema se tem feito, resulta, iniludivelmente, a sua impiedade, superstição e sacrilégio; porque, além de reunir em si tudo o que há de pior nas comuns maçonarias, tem ainda, a torná-lo mais repulsivo, essa indigna sedução tendente a inspirar aos homens o sistema físico e moral, investindo cara a cara, e sem rebuço, com os dogmas mais sólidos da religião (in ob. cit., pp. 44-52).

O Conde de Cagliostro (I)

Escrito por Camilo Castelo Branco

«José Bálsamo, mais conhecido pelo título de conde de Cagliostro, veio também a Portugal, disfarçado sob o título de conde de Stephens. Este famoso aventureiro era um cavalheiro da indústria que se filiou na Maçonaria com a intenção de utilizar em seu proveito a Maçonaria de Adopção [Ramo da Maçonaria Moderna destinada às mulheres]. Para esse fim fundou em Paris, em 1782, uma Loja que tomou o nome de Loja-Mãe de Adopção da Alta Maçonaria Egípcia. Era presidida pela esposa de Cagliostro e ele próprio tomava nela o título de Grande Copta.

Cagliostro entrou em contacto com as melhores famílias de Lisboa; mas apesar disso não conseguiu escapar ao faro de Manique, que ordenou a sua expulsão. Seguiu então para Itália e, tendo sido detido em Roma, em 1790, morreu na prisão em 1795».

- Manuel Borges Grainha em História da Franco-Maçonaria em Portugal

José Bálsamo, Conde Alexandre de Cagliostro nasceu em Palermo a 8 de Junho de 1743. Teve por mestre um químico, ou melhor, um alquimista de nome Altotas. Foi, além disso, reconhecido como o restaurador da Maçonaria Egipciana, a ponto de ser considerado ora um charlatão ora uma autoridade espiritual cujo poder tinha a virtude de comandar os anjos, quando não obrar em nome do Eterno Deus. Seja como for, o ocultista italiano produziu grande impressão na corte de Luís XVI, tendo, aliás, o seu nome titulado um dos romances de Alexandre Dumas, no qual jaz inesquecível o episódio em que José Bálsamo logra projectar a imagem da futura morte de Maria Antonieta numa garrafa de cristal.

Tendo ademais estado envolvido no processo do colar, retirou-se para Roma onde foi condenado à morte pelo Santo Ofício, que no final lhe comutou a pena em prisão perpétua. De facto, a resolução definitiva estava então reservada a Pio VI, tal como agora se segue:

«José Bálsamo, réu confesso e convencido de muitos delitos, e incurso nas censuras e penas publicadas contra os hereges formais, dogmatizantes, heresiarcas, mestres e sequazes da magia supersticiosa, e igualmente nas censuras e penas estabelecidas tanto nas constituições apostólicas de Clemente XI e de Benedito XIV contra aqueles que de qualquer modo favoreçam e promovam a sociedade e conventículos dos franco-maçons, como no édito da Secretaria de Estado contra os que em Roma ou outro qualquer domínio Pontifício tiveram nela parte: usando de graça especial, comuta-se-lhe a pena de relaxá-lo ao braço secular (pena de morte) em cárcere perpétuo numa fortaleza, onde deverá ficar estreitamente retido, sem esperança de obter mais graça; mas, tendo abjurado de todos os erros na prisão em que actualmente se encontra, determino que seja absolvido das censuras, impondo-se-lhe as devidas e saudáveis penitências.

Quanto ao livro manuscrito – prossegue Pio VI -, que tem por título Maçonaria Egipciana, solenemente o condeno, porque contém ritos, proposições, doutrinas e sistemas que conduzem à sedição e à destruição da religião cristã, e é supersticioso, blasfemo, ímpio e herético, pelo que deve ser publicamente queimado pelo ministro da Justiça, juntamente com os instrumentos pertencentes à mesma seita. Com uma nova constituição apostólica se confirmarão e renovarão, não só as constituições dos Pontífices predecessores, mas também o referido édito da Secretaria de Estado, que proíbem a sociedade e conventículos dos franco-maçons, mencionando em especial a seita egípcia e a outra vulgarmente chamada dos iluminados, estabelecendo-se contra todas as pessoas que nelas se juntem, ou por qualquer modo as auxiliem, as mais graves penas corporais».

Ora, esta resolução, que para Camilo Castelo Branco «corresponde plenamente a todos os ditames da justiça, da equidade, da prudência, da religião e da tranquilidade pública, não menos para o estado Pontifício, que para o mundo inteiro», encontra-se no seu livro José Bálsamo, O Conde de Cagliostro. Camilo é, pois, peremptório, a respeito do personagem, que toma por charlatão, impostor, ateísta, sacrílego, materialista, incrédulo e, mais que tudo, indigno do santo matrimónio por ministrar a Lourença Feliciana, sua mulher, a máxima com que frequentemente a corrompia para obter jóias e dinheiro: Que o adultério não era pecado numa mulher que se entregava por interesse, não por amor, a outro homem.

No seu livro, Camilo não distingue a Maçonaria operativa da especulativa. Por outras palavras, não distingue a Maçonaria medieval, corporativa e mesteiral da Maçonaria iluminista e racionalista reformulada em fracções, regras, ritos e lojas de perfil ou feição protestante. No entanto, refere o carácter impiedoso de várias espécies de Maçonaria, entre as quais a já referida Maçonaria Egipciana fundada ou restaurada por José Bálsamo, assim como, por indicação deste, a que dá, antes de mais, pelo nome de estreita observância, pertencente aos iluminados e apostada na destruição do catolicismo e das monarquias; finalmente, a da alta observância, aparentemente apostada na arte hermética mas, ao fim e ao cabo, subversiva e revolucionária.

De uma maneira geral, não há como fugir ao facto de a Maçonaria ter degenerado nos últimos dois séculos. Exemplo disso é o Grande Oriente Lusitano, o mesmo que, em nome da democracia e da república positivista, começou por erguer uma estátua ao cruel e ferocíssimo Marquês de Pombal, para, enfim, na história mais recente – que é a história culminante do jacobinismo, do ataque à Igreja Católica e do "catecismo socialista" – ter assaz contribuído para amordaçar Portugal na teia dos poderes e organizações internacionais. Mas essa é outra história que ultrapassa em muito o contexto histórico em que se situa e move o ilustre novelista de Oitocentos.

Resta, por agora, atender, ainda que brevemente, ao Conde de Cagliostro, segundo Camilo Castelo Branco.

Miguel Bruno Duarte


EM QUE SE DÁ UMA BREVE IDEIA DA MAÇONARIA EM GERAL, E UMA DESCRIÇÃO EM PARTICULAR DA MAÇONARIA EGIPCIANA

«Muitas vezes [José Bálsamo] usou também de um misterioso silêncio; mas a alguns que lhe perguntavam por seu nome, ou por sua condição, tomava o partido de responder: Ego sum qui sum; e quando apertavam muito com ele sobre esta matéria, o mais em que condescendia era pôr por escrito a sua cifra figurada numa serpente, que tinha na boca uma maçã trespassada com uma seta»

... A maçonaria é um agregado de pessoas vulgares e de costumes soltos, que se juntam em sociedade, ou, para melhor dizer, em sítio determinado. No ano de 1723, foi pela primeira vez impresso em Londres o livro das suas constituições por Guilherme Hunteer: ali se lê, que naquela cidade e seus arrabaldes se contavam já vinte casas particulares destes sectários, cada uma das quais tinha seu decano, e mandava todos os anos um deputado a uma assembleia para a eleição de um superior a quem todos estavam sujeitos.

A maior preocupação dos seus dirigentes foi ocultar a verdadeira origem ou modelo que se propuseram seguir, para melhor dissimular seu objectivo e fim, que no referido livro impresso em Londres, se diz ser o de fazer florescer a arquitectura. Depois, inicia-se a história por Adão, criado à imagem de Deus, que é o grande arquitecto do Universo: no decurso do tempo Moisés e Salomão recebem o nome de grandes mestres, e assim continua discorrendo, idade por idade, por todas as nações do mundo e primeiros monarcas, especialmente aqueles que têm sido amantes e protectores da Arquitectura.

Em outros livros, impressos, em particular, por aqueles que quiseram defender esta seita, intentou-se trazer sua origem, ou de alguns Templários que ficaram refugiados na Escócia, os quais, por motivos de cruzadas, achando-se muitas vezes misturados com os infiéis, se viram obrigados a convir em certos sinais para reconhecerem-se, ou de Tomás Cramnero, que se fez chamar Flagellum Principum e que no ano de 1558 foi bispo apóstata favorecido de Ana Bolena e depois queimado, ou de Oliveiro Cromwel, a quem chamavam o famoso libertador dos reinos, ou do antigo rei Artur.

As casas de reunião denominam-se lojas. Seguindo sempre a alegoria da arte mecânica, tem diversas classes e graduações: uns são moços, outros trabalhadores, outros mestres; e assim se distinguem os moços, que por outro nome são aprendizes, companheiros e mestres. Em muitas lojas há maiores graus, e são: arquitecto, mestre e outros semelhantes. Dos veteranos, isto é, dos graus mais elevados, escolhem-se os oficiais, que têm diversos títulos, como de secretário, irmão terrível, venerável e outros. As lojas pertencentes a um mesmo rito todas se comunicam entre si, e correspondem-se com uma loja-madre, cujo caporal, ou presidente, se chama grande oriente, e este envia a todas as suas instruções e oportunos regulamentos.

Os membros de uma classe celebram suas reuniões e realizam as suas funções separadamente das outras; daqui vem que os aprendizes não sabem, nem devem saber, o que fazem os companheiros, nem estes o que pertence aos mestres. Para conservar um tal sistema, os indivíduos da seita reconhecem-se entre si por alguns sinais recíprocos, e toques de mãos, e também por algumas palavras proferidas alternadamente, sílaba por sílaba: e assim cada uma das classes tem distintos sinais, toques, e palavras. Umas e outras mudam também segundo a variedade dos ritos das lojas.

De um grau sobe-se a outro, com intervalo de tempo. Muitas e complicadas são as cerimónias que se fazem para o recebimento, e respectivo acesso aos graus, que sempre têm lugar na loja. Em diversos livros impressos encontra-se o plano; (...) Ali há muito de ridículo, mas muito mais de superstição, de profanação: e de abuso das coisas sagradas. Três circunstâncias são aqui assinaladas principalmente. A primeira: a obrigação que contraem os indivíduos, de profundo e inviolável segredo, debaixo de um terrível juramento. A segunda: a cega obediência que prometem a qualquer ordem do seu superior. A terceira: uma incorporação e reunião entre eles, que, superando ainda os vínculos de uma natural fraternidade, um ocorre prontamente às necessidades do outro, em qualquer lugar, tempo, e circunstâncias.

Qual deva ser o resultado destas combinações, cada um de per si mesmo pode prevê-lo. Alguém que fez suas observações sobre o carácter dos seus componentes, e especialmente dos seus caporais, julga-os a todos ou ineptos em ciências, ou depravados nos costumes, ou incrédulos da verdadeira fé. Quem tiver conhecimento de algum, facilmente avaliará a importância desta reflexão. Nós, deixando de parte todas as especulações, falaremos de puro facto, e sem mistério. Por muitas denúncias voluntárias, de prisões, de testemunhas e outras apuradas notícias, que com os respectivos documentos se conservam em nossos arquivos, vê-se claramente que os seus ofícios de sociedade são mentirosos, suas especulações falsas; alguns professam uma descarada irreligião, e outros tratam de sacudir o jugo da subordinação e destruir as monarquias. Este é, indubitavelmente, o fim a que todas obedecem, porém nem a todas, nem a todos, nem a um mesmo tempo se comunica o grande segredo, sem que primeiro os caporais e directores tenham esquadrinhado bem o coração e regulado as inclinações de cada indivíduo. Antes procuram cativar-lhes os ânimos com a lisonja de descobertas portentosas ou podem remir o homem das suas misérias, concedendo-lhes o uso daquelas paixões, que permitem dar relevo a todo o infame prazer. Isto não pode causar admiração, sabendo-se que ali domina o partido democrático, que tem por fito atacar e destruir as monarquias.

É, portanto, bem recomendável a vigilância e zelo dos Romanos e Pontífices em ter condenado e proscrito esta sociedade. A santa memória de Clemente XII na sua Constituição, que começa In Eminenti, publicada aos 6 de Abril de 1738, fulminou sobre ela e seus respectivos adeptos excomunhão ipso facto incurrenda, sem alguma declaração e reservada ao mesmo Pontífice, Preter quam in mortis articulo... À pena espiritual juntou também a Constituição o terror das penas temporais, mandando todos os ordinários, superiores eclesiásticos e inquisidores da fé velar sobre tais sectários e castigá-los condignamente: Tam quam de haeresi vehementer suspectos.

Clamem a todo o gritar os incrédulos que isto foi um fanatismo da Religião. O amor e a observância dela, foi uma das causas que animou aquele sábio Pontífice a pensar de tal modo, vendo os gravíssimos danos que adviriam especialmente de uma reunião de pessoas de todas as seitas, e a importância de um juramento de profundo segredo, que só entre eles é conhecido; e viu com Cecílio Natel sobre Minúncio Félix, que honesta semper publico audent selera secreta sunt. Reflectiu que os conventículos sempre foram interditados por todas as leis, assim canónicas como civis, e que em qualquer domínio ou governo os reconhecem perniciosíssimos à tranquilidade pública e à segurança do Estado.

Desta forma procurou Clemente XII cuidar no bem universal de todo o mundo. Porém, nos seus estados fez ainda mais: quis que se publicasse, como se publicou, um édito com data de 14 de Janeiro de 1739, no qual, debaixo de irremessível pena de morte, proibiu reunir-se, escrever-se ou falar-se da Sociedade dos Livres-Muratores, como perniciosa, suspeita de heresia e sedição, sujeitando à mesma pena o que solicitasse ou intentasse ser nela admitido, ou lhe prestasse ajuda, favor, conselho ou casa; impõe finalmente a todos a obrigação de revelá-lo, sob pena de incorrer nas penas corporais e pecuniárias a arbítrio, em caso de transgressão.

O imortal Benedito XIV, animado do mesmo zelo, na ocasião do concílio universal, ano de 1750, compreendeu quanto se tinha propagado a desordem e o dano produzido pelos chamados pedreiros-livres, e soube-o com aquela certeza que lhe subministraram as sinceras confissões de muitos estrangeiros, os quais, passando a Roma para conseguir indulgências, recorreram a ele para obterem a absolvição da excomunhão fulminada na bula de seu predecessor. Este confirmou-a também e publicou-a de novo per extensum, como sua Constituição, que começa: Providas Romanorum Pontificum de 18 de Maio de 1751.

As potestades seculares, antes e depois, têm pensado do mesmo modo. Deixemos, pois, as rigorosas proibições feitas no ano de 1737 em Manheim, pelo sereníssimo Eleitor Palatino, em Viena, em 1743, em Espanha e Nápoles em 1751, em Milão em 1757, em Mónaco em 1784 e 1785, e também em outros tempos na Sabóia, Génova, Veneza, Ragusa, e outras. Não nos limitaremos só aos países apostólicos, mas também trataremos dos outros.

Por um irrefragável documento conservado nas actas do Santo Ofício, consta que a Porta Otomana, no ano de 1748, foi informada de que um francês criara, em Constantinopla, lojas de pedreiros-livres, isto em casa de um mercador inglês, tendo também convidado os turcos para nelas ingressarem. O capitão Baxá deu ordens terminantes para que a sociedade fosse encerrada, presos os seus adeptos e incendiada a casa. Tomada a tempo esta disposição, foi tal o terror dos sectários, que desbarataram imediatamente o mobiliário e nenhum deles falou mais em tal. Juntamente, foi intimidado o inglês dono da casa para que não tornasse a admitir, se a não queria ver reduzida a cinzas. A Porta Otomana informou do facto os embaixadores das cortes estrangeiras que estavam contentes com a tolerância das igrejas para uso da religião católica; foi também intimado o francês que era superior ou cabeça, para que saísse imediatamente da cidade, e de facto logo embarcou, sem mais se ouvir novas dele.

Parece que o que até aqui se tem dito é bastante para descobrir o disfarce debaixo do qual se quer esconder esta sociedade, e para todos se resolverem seriamente a livrar-se deste contágio.

Se acaso fica na incerteza do que até agora se tem exposto, ouvirá brevemente as coisas que, no presente processo, disse Cagliostro, ao qual não se pode negar um pleno conhecimento da matéria, como quem por tantos anos viveu entre os maçónicos e é considerado por eles como um génio sobrenatural.

Ele disse que são muitas as seitas em que está dividida a maçonaria, mas duas são as mais frequentes: a primeira chama-se da estreita observância, e pertence aos iluminados; a segunda da alta observância. Aquela professa uma absoluta incredulidade, obra magicamente, debaixo do especioso título de vindicar a morte do grão-mestre dos Templários, tendo principalmente por objecto a destruição total da religião católica e das monarquias. A outra, aparentemente, emprega-se em indagar os arcanos da Natureza para aperfeiçoar a arte hermética, especialmente na pedra filosofal; porém, a absoluta subordinação a seu superior e o vínculo do juramento do segredo, indicam que os seus fins são combater o estado e a tranquilidade pública.

Nesta segunda classe, confessou Cagliostro ter-se adscrito em Londres, e igualmente sua mulher, tendo ambos tido suas patentes; Cagliostro pagou a sua com cinco guinéus. Num mesmo dia foram admitidos aos três graus que compõem a loja, que vem a ser, como já se disse: aprendiz, companheiro e mestre, e receberam os arneses pertencentes ao ministério, isto é, mandil, faixa, estola, esquadro, compasso e outros mais. À mulher deram uma cinta ou liga, dizendo-lhe que era aquela a insígnia da ordem, e nela estavam escritas estas três palavras: união, silêncio, virtude, e lhe foi mandado que devia dormir aquela noite com ela, cingindo-a a si. Refere largamente Cagliostro as funções e cerimónias observadas na admissão aos ditos graus. Já dissemos que o plano anda impresso em vários idiomas (...). Antes do aceite, exigem-se algumas provas de valor do indivíduo que deve ser admitido. Nas que deu Cagliostro, duas foram capazes de mover, não sabemos se o enfado, se o riso. Primeiramente estava na sala uma corda atada de um lado a outro, sendo ele obrigado a dar um salto para, com a mão, se agarrar a ela, ficando assim obrigado por algum espaço de tempo; mas, como era pesado, isto custou-lhe, sentindo alguma dor e ficando-lhe a mão extensa. Depois taparam-lhe os olhos e deram-lhe uma pistola descarregada, mandando-lha carregar com pólvora e bala, o que fez; porém, quando ouviu que a devia disparar contra a testa, como era natural mostrou toda a repugnância. Foi-lhe então tirada com desprezo das mãos e levaram-no a ir prestar juramento. Na solenidade e importância deste, induziram-no a que descarregasse, como já lhe tinham mandado, a dita pistola, que em seguida lhe deram. Com efeito, descarregou-a, estando também com os olhos tapados, e sentiu o golpe na cabeça sem lhe fazer a menor lesão; ele observou, em outras admissões, que esta experiência era uma ficção, porque, quando se dá ao iniciando, pela segunda vez. a pistola, esta está descarregada, e quando vai dispará-la, outro dispara a carregada, e outro, com um ligeiro instrumento, dá um golpe na cabeça do vendado, que desta forma fica julgando que o tiro lhe acertou, admirando-se por ficar ileso.

A forma do juramento que pronunciou é a seguinte: Eu, José Cagliostro, em presença do grande arquitecto do Universo, e na de meus superiores, como também da respeitável sociedade em que me acho, obrigo-me a fazer tudo quanto me for mandado por eles, e portanto juro, debaixo das penas estabelecidas pelos ditos meus superiores, obedecer-lhes cegamente, sem perguntar o motivo, e de não revelar os segredos, nem por palavra nem por escrita, nem os arcanos que me forem comunicados (in José Bálsamo, Conde de Cagliostro, Hugin, 2001, pp. 39-44).

Continua

Condenação Inquisitorial do Conde de Cagliostro


Sentença promulgada pelo Papa Pio VI: "Prisão perpétua a ser cumprida na Fortaleza de S. Leo, onde o acusado deverá ser mantido sob estrita custódia e sem esperança de graça."


Fortaleza de S. Leo

Interior da cela de Cagliostro

Heresia e Patrística


1-Etimologicamente, heresia significa "escolher", "preferir". Ao longo de todo o período em que a Igreja exerceu sua dominação, a palavra adquiriu um sentido polissêmico múltiplo, ou seja, tudo o que contrariava o pensamento eclesiástico passou a levar esse rótulo.

2-No período medieval, os protestos contra as injustiças da ordem social vigente vieram muitas vezes revestidos do discurso de contestação religiosa. Isso não apenas porque a Igreja fazia parte de tal ordem, mas também porque, naquela época, o conteúdo religioso era o limite do discurso de protesto. Era o único idioma inteligível, quer para a aceitar, quer para se opor.

3-O fato de o Papa Gregório IX ter chegado a proibir a leitura da Bíblia aos fiéis (1229) é um dado sintomático, ela poderia ter uma interpretação "subversiva" e, portanto, herética. As heresias religiosas representavam o nascimento das primeiras e importantes minorias dissidentes no Ocidente europeu.

4-Posteriormente, quando a repressão às heresias se organizou em tribunais inquisitoriais (séc. XIII d.C.), a Igreja pôde, ideologicamente, apropriar-se dos primeiros escritos cristãos para justificar as suas atitudes.

5-No Evangelho de São João, Cristo disse que aquilo que não permanecesse nele seria arremessado fora e lançado ao fogo para arder.

6-São Agostinho viu a tortura como um meio útil para devolver ao rebanho as ovelhas desgarradas, já que ele apenas causaria dano à carne pecaminosa, calabouço da alma.

7-Segundo Vacandart, em Les origines de l'hérésie albigeoiseSão Agostinho afirma que se a Bíblia recomenda o castigo da esposa infiel, tanto mais justo é castigar o que renega a Igreja. Os hereges matam a alma dos homens, enquanto as autoridades matam apenas os corpos.

8-Também intransigente para com as dissidências cristãs foi São Jerônimo, o qual argumentou que nem os maiores excessos deveriam ser considerados crueldade se fossem para a defesa de Deus. Segundo ele, só pela morte poderia o pecador atingir a salvação espiritual.

Referência:

LOPEZ, Luiz Roberto. Historia da Iinquisição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

São Tomás de Aquino, o Teólogo da Inquisição



"As for heretics their sin deserves banishment, not only from the Church by excommunication, but also from this world by death."

"Por seu pecado, os hereges merecem não apenas ser separados da Igreja pela excomunhão, mas também do mundo, pela morte." 


- São Tomás de Aquino



Tomás de Aquino em pintura a óleo de Sandro Boticceli.


1-Enquanto a Igreja combatia os heréticos pela repressão, seus teólogos tratavam de fornecer os argumentos para justificar a intolerância e nesse campo, nenhum foi tão competente como São Tomás de Aquino (Lácio, Roccasecca, 1225 — Lácio, Fossanova, 1274), monge dominicano, filósofo e teólogo proclamado Doutor da Igreja.

2-Por meio da Summa Teologica, apoiado no raciocínio lógico de Aristóteles, São Tomás procurou explicar os dogmas da fé. Compôs 21 volumes, 38 tratados, 631 questões e 10.000 objeções. Montou um documento completo sobre o catolicismo - frio, lúcido, conciso, objetivo.

3-Com respeito à heresia, as posições de São Tomás foram claras: uma vez aceita a Igreja por um livre decisão do católico, este perdia o direito de contestá-la ou abandoná-la.

4-Mais ainda: se é justo castigar o moedeiro falso pelos males que faz à economia, muito mais justo é castigar o herege pelos males que faz à Igreja, responsável pelas almas e pela vida eterna.

5-Segundo São Tomás, se um herege persiste no erro, apesar das exortações religiosas, deve ser excomungado - privado da vida eterna - e morto - privado da vida terrena.

6-Através de um prodigioso malabarismo de raciocínio, São Tomás explicou por que Deus permitia o surgimento das heresias da seguinte maneira: a existência do mal é uma necessidade para se poder distinguir o bem, sendo que extirpação do mal reforça o bem.

7-O bem se nutre do mal como o leão do asno, declarou São Tomás - daí a razão pela qual é impossível a Deus criar um homem sem pecado como é impossível existir um círculo quadrado. Dessa maneira, se, por um lado, a heresia é um mal indestrutível, por outro, deve a Igreja "nutrir-se de hereges em nome da salvação de todos os crentes".

8-Ainda segundo São Tomás, era justa a execução do herege relapso, pois, comprovando não ser constante em sua fé cristão, ele poderia, no convívio com outros cristãos, "infectá-los" com sua heresia. Ademais, se a Igreja relaxasse no seu rigor para com ele, isso faria com que os outros viessem a ter menos medo de cair no erro.

9-Defendendo a punição, mostrando a necessidade de intolerância e explicando o pecado com base em critérios de uma suposta lógica divina, São Tomás de Aquino foi não apenas o mais completo ideólogo da inquisição que se institucionalizava como também o pensador que melhor formulou as justificativas intelectuais de um Estado Teocrático-Absolutista - o Papado assumiu o caráter de uma verdadeira monarquia absoluta, a primeira da Europa e munida de uma ideologia transnacional, considerando que a fé não tinha fronteiras - que então se estruturava e buscava firmar a sua autoridade centralizadora numa Europa repartida em feudos rivais e com monarcas politicamente quase impotentes.

Referência:

LOPEZ, Luiz Roberto. Historia da Inquisição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

A "Bucha": Capítulo da Ordem dos Illuminati no Brasil?

Fachada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo


A Ordo Illuminatorum (Ordem dos Iluminati), fundada por Adam Weishaupt, chegou ao Brasil?

Segundo os historiadores maçons A.Tenório D'Albuquerque e Brasil Bandecchi, o revolucionário alemão Júlio Frank, que no século XIX lecionou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, foi o responsável por trazer a Burschenschaft ao Brasil, onde é conhecida simplesmente por "Bucha". E para quem não sabe, a Burschenschaft é uma extensão turingiana da Ordo Illuminatorum.

A informação pode ser consultada nos seguintes livros:

BANDECCHI, B. A Bucha, a Maçonaria e o Espírito Liberal. São Paulo: Teixeira. 1978. p. 89.
D'ALBUQUERQUE, A. T. Sociedades Secretas. Rio de Janeiro: Aurora, 1970. p. 500.


Como surgiu a "Bucha"?

A Burschenschaft original surgiu em 1815, na cidade de Jena, no estado da Turíngia, Alemanha. Seus integrantes eram estudantes universitários que estavam diretamente ligados à Ordo Illuminatorum e às lojas maçônicas alemãs.


Como a "Bucha" se estabeleceu no Brasil?

Julio Frank passou no concurso para lecionar no Curso Anexo da Academia de São Paulo em 1834, ou seja, seis anos após sua chegada ao Brasil. Depois que entrou na Faculdade, Frank pôde dedicar boa parte de seu tempo à elaboração do rito da "Bucha" e iniciar o recrutamento de alunos.


Qual é o objetivo da "Bucha"?

O objetivo dos "bucheiros" (iniciados na Burchenchaft) é o mesmo que o dos "bonesmen" (iniciados na Skull & Bones) dos EUA e dos antigos "iluminaten" da Baviera: abrir caminho para o Governo Mundial (Nova Ordem Mundial). 


Como a "Bucha" pode ser a ramificação de uma Ordem extinta?

A Ordo Illuminatorum jamais deixou de existir pois, mesmo após o decreto de dissolução promulgado por Karl Theodor em 1785, seus integrantes continuaram atuando clandestinamente, fundando novas sociedades secretas, dentre as quais surgiu a Burschenschaft, e infiltrando-se se em diversas ordens maçônicas, sociedades literárias e grupos estudantis. 

Adam Weishaup escreveu: "Uma cobertura é sempre necessária, pois na ocultação reside grande parte da nossa força. É por isso que nós - illuminati - devemos sempre nos escondermos sob o nome de outra sociedade." (Die neuesten Arbeiten des Spartacus und Philo in dem Illuminaten-Orden, p.143.)


Qual a influência da "Bucha" no Brasil?

Diversos membros da "Bucha" tiveram enorme influência nos acontecimentos políticos ocorridos a partir do séc. XIX. Entre os 133 participantes da Convenção de Itu, em 1873, que resultou na criação do Partido Republicano Paulista, predominavam bucheiros como Campos Salles, Francisco Glicério, Américo de Campos e Rangel Pestana. Esses últimos foram, ao lado de Júlio de Mesquita, os fundadores do jornal O Estado de S. Paulo, que foi também uma espécie de órgão oficial da "Bucha". Consta que Júlio de Mesquita Filho foi "chaveiro" da "Bucha".

A famosa Comissão dos Cinco, encarregada de elaborar o anteprojeto da Constituição republicana, tinha entre seus membros três "bucheiros", Saldanha Marinho, Américo Brasiliense e Santos Werneck. Essa informação segundo Afonso Arinos de Melo Franco (também bucheiro e filho de bucheiro), na biografia que escreveu sobre o presidente Rodrigues Alves. Os três ministros civis mais proeminentes do governo provisório encabeçado pelo marechal Deodoro da Fonseca eram da "Bucha": Ruy Barbosa (Fazenda), Campos Salles (Justiça) e Quintino Bocaiúva (Negócios Estrangeiros). Além disso, também foram bucheiros na República do café com leite, os presidentes paulistas Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Washington Luís e Júlio Prestes, eleito em 1930 e que não chegou a assumir, assim como os presidentes mineiros Afonso Pena, Wenceslau Braz e Arthur Bernardes.


A "Bucha" continua em atividade?

Bom, o professor Julio Frank disse: "Os que estiverem na Academia continuarão a obra de assistência; os que terminarem o curso terão nela uma sociedade de ex-alunos, tão útil, e se auxiliarão mutuamente através do tempo. E, ainda mais tarde, se quiser, poderá governar o país." 

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Leitura recomendada:

CARVALHO, H. A herança liberal de Júlio Frank. Revista Problemas Brasileiros, São Paulo, n. 388, jul/ago 2008. Ano 46. 
BARROSO, G. A História Secreta do Brasil. Porto Alegre: Revisão, 1993.
DULLES, J. W. F. A Faculdade de Direito e a Resistência Anti-Vargas: 1938-1945. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
MOTOYAMA, S (org.). USP 70 Anos, São Paulo: EUSP, 2006.